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carnaval

Grupos, Cordões, Escolas e Blocos Pretos. Nossa alegria solene é herança das Áfricas que nos legaram feições.

Por Fernando Alabê

Criadores perseguidos e a ascensão da cultura preta da folia

Grupos de trabalhadores negros de diversos ofícios no pós-abolição, em seus momentos de folga, passaram a difundir seus costumes em certa medida livremente nos centros urbanos brasileiros e desses momentos surgiram os encontros de partido alto no RJ, que eram envoltos a atmosfera dos terreiros de candomblé, que ainda não tinham esse nome, mas o Samba já havia sido nomeado como se conhece, mas, por ser às vezes nome de filhas de santo e trazer acentos de Congo, Moçambique e Angola.

Batucadas de terreiro que legaram a Pixinguinha levar ao mundo os ritmos do samba, lundu, candomblés, porém sendo sempre conhecido pelo “chorinho”, que se aproximava das plateias e “mimetizadores” brancos da arte preta que já ali seguia dando os contornos da produção artística musical do país, que não estavam a mercê de serem pegos na lei de vadiagem ao contrário dos pretos que para andar com seus instrumentos deveriam ter estes assinados por políticos, como o pandeiro de João da Baiana, assinado com admiração pelo senador Pinheiro Machado.

Década de 1920, Heitor dos Prazeres, talvez, o “Van Gogh brasileiro”, para se ter um noção de quanto se pode referendar sua obra e sua importância em nossa arte e cultura, funda a “Deixa Falar”, no bairro do Estácio, Rio de Janeiro, primeira Escola de Samba, seguido por Portela, de Paulo da Portela, escola já centenária e Mangueira, de Cartola, primeira campeã.

Em São Paulo surgem os nossos quilombos urbanos

Já aqui em São Paulo, pretos vindos do interior, Pirapora, Campinas e Vale do Ribeira, se instalaram nas regiões centro-oeste e centro da cidade. Em 1914 surge, fundado por Dionísio Barbosa, o Cordão da Barra Funda, gênese de Camisa Verde e Branco. O time de futebol Cae Cae, dá início ao Cordão Vai Vai em 1928, tendo como personagens, figuras  Henricão, Livinho e Frederico Penteado, no bairro do Bixiga. Assim surgem nossos primeiros Quilombos do Samba Paulistano.

O Cordão da Barra Funda, aliás, foi perseguido no Estado Novo e mandado cessar atividades por Getúlio Vargas até 1954, quando se torna “Escola de Samba”, depois da Lavapés e então a maioria das agremiações carnavalescas passaram a se iniciar como escolas de samba em São Paulo, a exemplo de Acadêmicos do Tatuapé, Unidos do Peruche, Unidos de Vila Maria, entre outras.

Em 1968, o então prefeito da cidade de São Paulo, Faria Lima, depois de receber os representantes de Escolas de Samba da cidade e dos ainda cordões (como o Vai Vai se mantinha) institui a subvenção às Escolas de Samba e convoca um carnavalesco carioca para organizar os desfiles das agremiações paulistanas, tendo Nenê de Vila Matilde como primeira grande vencedora dos primeiros concursos, aliás escola vizinha do primeiro Carnaval de Rua da Cidade, na Vila Esperança, zona Leste de São Paulo.

As estruturas dos cordões eram diferentes das escolas de samba, desde o ritmo e andamento do samba, a presença de instrumentos harmônicos, melódicos e metais em suas alas musicais e baterias que tocavam ainda células parecidas com o Batuque de Pirapora, Umbigada, Tiririca e traziam balizas, trombones, clarins, tambores ainda afinados no fogo, corte, estandarte, daminhas, rumbeiras e capoeiragem, com desfile mais amplo em seu tempo, já as escolas de samba tinham as alas livres, coreografadas, baianas, passistas, mestre sala e porta bandeira, instrumentos de percussão apenas e cavacos e violões, já industrializados e com um tempo e trajeto menores de desfile.

Em 1972, o último cordão se torna Escola de Samba, a Vai Vai e o carnaval dos grandes grêmios recreativos e culturais se faz nas bases muito semelhantes às que vemos hoje em dia, inclusive na intervenção da branquitude, já que esta pautou as novas bases do carnaval paulistano, pelo dinheiro, apenas subvencionando as escolas de samba, pela mão do regulamento do final dos anos 1960, da então prefeitura de Faria Lima.

Samba de famílias

As escolas de samba geridas por famílias relativamente abastadas e constituídas por núcleos brancos em sua direção e até mesmo posse em São Paulo ganham vulto, nos anos 1970 e 1980, assim como no Rio de Janeiro, ainda que houvessem nessas escolas uma comunidade preta oriunda dos bairros periféricos da época e para onde também famílias pretas, que residiam do lado centro-oeste e centro da cidade migraram, com os processos de gentrificação e expulsão para bairros como Casa Verde, Parque Peruche, Bairro do Limão e Vila Brasilândia na zona norte de São Paulo, viram ascender agremiações em suas regiões, onde se fazia presente um senso de comunidade preta que buscava valorizar essa contribuição afro diaspórica e escrever uma história de aquilombamentos pelo samba, algumas geridas por esta comunidade e outras pelas citadas famílias abastadas brancas. Nas regiões centrais, se mantiveram a sua maneira, grêmios como Vai-Vai, Paulistano da Glória, Império do Cambuci, Lavapés e Principe Negro, nos quais famílias pretas ainda dominavam em maior parte os comandos das agremiações, mas depois algumas, forçosamente, migraram para bairros mais afastados e infelizmente deixaram, inclusive, mesmo de existir.

Mídia e investimentos diversos

Com o crescimento do interesse midiático sobre o Carnaval de escolas de samba, surgem as “super-escolas de samba”, com os grêmios ficando cada vez mais poderosos financeiramente, a partir do enxerto de dinheiro de famílias abastadas, comerciantes, industriais, meios de comunicação e políticos, todos brancos, alguns até mesmo, ligados a negócios envolvendo jogos de azar e outras fontes não oficiais de dinheiro que se aliaram às escolas de samba, ou “patronaram” essas agremiações no Rio de Janeiro e em São Paulo. Também se agigantaram os desfiles tanto lá quanto cá, tornando o negócio Carnaval uma grande engrenagem do entretenimento, custando muito caro e rendendo também muito dinheiro, o que em termos de estrutura social, afastou paulatinamente as diretorias e mandatários pretos do comando das escolas e em alguns casos mais à frente das alas e setores gerais de algumas.

Surgem os Blocos Afro

Paralelo a este movimento, em Salvador, em 1974, o Ilê Aiyê faz seu primeiro desfile, com influencias das escolas de samba, bandas de rua e assim como todo samba urbano do Brasil, com batidas oriundas do candomblé, emanado pelo movimento Black Power, que daria inclusive, seu primeiro nome, o primeiro bloco afro do Brasil surge cantando a negritude e suas africanidades, se fazendo um grande elo com todo os negros do mundo. Constitui-se aqui um paradoxo ao embranquecimento em curso das escolas de samba, mesmo não sendo a intenção do “mais belo dos belos” ser este contraponto, hoje podemos dizer que este posicionamento influenciou o surgimento e muitos grêmios pretos sejam em Salvador, sejam no Rio de Janeiro, Minas e São Paulo.

Enquanto as escolas de samba embranqueciam, os blocos afro foram surgindo e se constituindo como novos quilombos em musicalidade, corporeidade e atitude em busca de um lugar de pleno destaque aos pretos e pretas que os compuseram e compõem.

Grandiosidade e declínio de suas tradições

As escolas de samba entraram para o rol dos grandes eventos midiáticos do ano e isso lhes voltou holofotes em grandiosa escala, de modo a se tornar um espetáculo cada vez mais exigente em termos tecnológicos, cada vez maiores seus elementos alegóricos e cada vez menos tradicionais suas feições, tomando contornos de paradas de parques temáticos estadunidenses ou europeus, repletos de efeitos especiais.

Observa-se uma derrocada do samba e seus arquétipos e ascensão do espetáculo audiovisual pasteurizado. Toda a estrutura inchada a ponto dos foliões serem obrigados a gastar fortunas com ensaios, fantasias, etc e consequente afastamento de famílias inteiras oriundas de suas comunidades, por não terem condições de arcar com três ensaios por semana, por exemplo, em geral essas famílias se compondo de pessoas pretas, corroborando assim, nesse movimento o embranquecimento do contingente de componentes das escolas de samba. Cada vez mais empresários, comerciantes, de famílias brancas ingressam nas escolas de samba e assumem postos de comando até que nessas diretorias não se apresentam pessoas pretas.

Nos anos 1990/2000, as torcidas organizadas, são proibidas de existirem no estado de São Paulo, se tornam assim escolas de samba, que com verbas dos mesmos patrocinadores de seus times e mecanismos diversos dos quais as escolas de samba surgidas de comunidades pretas não dispunham, realizam carnavais grandiosos dos quais as escolas mais tradicionais sequer se aproximar em termos de investimento e grandiosidade, no que se pode dizer quanto a suas alegorias e adereços, bem como fantasias. São alterados, a partir de então o modo de julgamento dos quesitos que não avaliam os elementos de fato do samba e de uma escola de samba, mas sim os que corroboram os desfiles como eventos midiáticos espetaculares, mas cada vez menos arraigados de suas tradições sambísticas.

Tecnologias e Saberes e uma Rede de elaboração que se estendem muito além da dita folia

Segue em curso paralelo, não em resposta, mas em organização necessária, o advento dos blocos afro paulistanos que priorizam ou especificam única e exclusivamente a presença e o protagonismo de pessoas pretas, em São Paulo.

Entidades como Ilu Obá de Min, Zumbiido, Ilu Inã, É Di Santo, passam a representar nas ruas durante o Carnaval e ao longo do ano em suas ações formativas, novas células de aquilombamento pela arte preta e suas tecnologias.

Cada qual com suas referências e maneiras, mas todos buscando e tendo em suas fileiras e comandos o máximo de pessoas pretas sendo representadas e protagonizando um Carnaval atento às suas origens e no foco em ser cada vez mais representativo neste sentido.

As agremiações carnavalescas pretas são mecanismos que abarcam uma gama muito grande de saberes e seus elementos constituintes que se expressam na musicalidade nos movimentos dos corpos em dança, no visual e nas relações.

São ambientes inter-geracionais que promovem o convívio de pessoas em prol de uma elaboração, produção, realização e entrega de um produto artístico de proporções imensas, seja para seus agentes, seja para o público no nível que for, dos blocos afro ou das escolas de samba. Estes aspectos geram envolvimento de profissionais, de uma rede de fornecimento de materiais e serviços que transformaram o Carnaval numa indústria, desde a menor das agremiações até as mais conhecidas Escolas de Samba e incluindo aqui os blocos afro.

Ao longo de meses o que se vê em fevereiro é preparado, envolvendo profissionais de diversas áreas, que se dedicam às atividades que preparam a festa, elaborando seus conceitos, criando e confeccionando seus elementos, promovendo fluxos de saberes em atividades que vão da formação e desenvolvimento de habilidades artístico culturais em várias formas de expressão, que possibilitam a execução de peças musicais de riquíssimo repertório, bem como de movimentos coreográficos e criações em artes visuais de grande beleza e força na busca de um reconhecimento e estabelecimento de práticas pretas que emanam pelas artes que as compõem. Novas formas de juntar nossa gente em prol de um evento que inspira a construção de nossas possibilidades a partir de nossas potências e realizações.

publicado em 09/02/2024